terça-feira, 30 de setembro de 2014

Menos aqui



A cada dia estou menos aqui
Um pouco mais longe algures mais alto
A cada dia desprendo um laço
Como um balão 
à espera 
que lhe cortem o fio.
A cada dia viajo mais dentro
Sem que me parem sem que me salvem
Sou levada longe
Sou alada alto
E deixo para trás os meus sapatos
Os meus trapos
Viajo à boleia dos poemas
Viajo na doçura da cantiga
Cada dia, 
um pouco menos mulher
Cada dia 
um pouco mais rapariga.

A cada sol estou aqui menos
Ou estou somente menos
Porque, do que semeio 
fica um punhado de mão
Enquanto o coração
Esse,
não aguenta de cheio.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Old letters

Danúbio


Se tiver que cair do mais alto penhasco
para viver
escolho cair.
Escolho cair e voltar a subir essas íngremes escarpas
para de novo me lançar nos espinhos
como um peixe sem memória
que insiste em ver o oceano
encerrado no seu globo.
Eu insisto em não largar
o passado, os meus erros,
as minhas perdas, a minha inocência.
Eu insisto em lembrar.
Disso preciso.
Porque eu sou amante da mágoa
como beijo na boca a alegria.

Se tiver que lembrar o irremediável
para viver,
lembrarei.
O irremediável é tudo o que temos.
Todo o tempo partido
em pequenos "para-sempres".
Eu guardo o passado como tesouros.
Eu sou feliz como quem chora.
Eu consigo, a cada momento, o infinito.
Tudo o que sei, tudo o que vi
agora
eternamente.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Mosto



Hoje bebi o doce mosto.

Que vinha anunciando o fim das coisas quentes. O início das coisas frias e castanhas.
Era doce vinha das uvas. Sabia às mãos que o apanharam, às prensas que o espremeram.
Sabia adegas de pedra e carvalho, caves fundas cheias de gente cantante com tanques púrpura tingidos dos anos, alambiques de ferver bagaço.
Hoje bebi o doce mosto e lembrei-me que é hora de celebrar dentro das casas, sentados em bancos e salamandras lambendo o ar, coisas penduradas no tecto: tachos, uvas chouriças vassouras. Saudades de casa e nem sei onde é, procuro-a aqui nas caves apertadas, nas ruas e Etyek e suas adegas que se visitam porta a porta, nas conversas aconchegadas pelo espesso vinho. Estivesse eu onde estiver estarei a pensar em castanhas a rebentar seus ouriços. Estarei a pensar em folhas molhadas. Estivesse onde estiver estou a imaginar uma mesa corrida de grossas negras traves e os que amo sentados em redor. Um pão um vinho um queijo, um repertório de piadas e cantigas. 

Estejam onde estiverem, bebam o doce mosto e digam comigo: bem-vindo bem-vindo.