quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Os cântaros não têm mãos


O que faço é mais forte que o que decido.
Sou um acto maior que o que persigo.
Escavo com uma mão procurando água. 
E com a outra afasto as areias.
Sempre foi assim:
Uma mão que ganha
Uma mão que perde.

Sou saco roto não cansado de encher,
Um cântaro transbordante na fonte infinita.
Cá dentro nada mais cabe senão
Deitando fora.
E é isso que faço, deito fora.
Água pura por vezes, deito fora.
Carros e paisagens, deito fora.
Olhos e beijos,
Deito fora.
Abraços ansiados,
Deito fora.
Mãos e corpos nus, deito fora.
Jantares no forno, deito fora.
Fora!

Sou cântaro transbordante
De água puro cheio
Podia fechar a torneira mas continuo
A achar que consigo
Encher-me apenas um pouco mais.

Mas os cântaros não têm mãos.
Assim, 
as torneiras não poderão ser fechadas.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Telhados


Odeceixe

Eu sou coração pulsante e água fresca
Sou telhados de Lisboa na luz dourada das oito horas
Eu sou minha, despertada.
Tenho os pés descalços e uma saia rodada e é Verão
E apaixono-mo pelo rio como pelos poetas
Porque apenas procuro as coisas que reflectem.
Na verdade é por mim que me apaixono
Pelas minhas formas deselegantes e olhar aberto
Apaixono-me pelo meu coração, carente de música
E abraços.
Apaixono-me pelas palavras que despejo e nem sei se são minhas
Ou por passos que um dia darei na areia.
Um dia irei pegar num punhado de areia
E separar os grãos um a um
Para ver a luz que os atravessa
Porque eu sou ingénua como a água que os molha
Repetidamente, em vagas
E não chegarão os dias para as surpresas.
Hoje sou uma menina sentada no telhado
Mãos nos joelhos
E o melhor presente é saber que posso olhar o rio como se fosse a primeira vez
O melhor presente é encontrar quem me lembre
Que cá dentro bate a alma
E os dias são finitos.





quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Debaixo



Debaixo de tudo ficas tu
Meu paciente manto
Tu que cobres todas as minhas coisas
Que tapas do pó e da mágoa
Debaixo de todas as coisas aladas
Ficas tu que me amparas a queda 
Esses braços francos
De força dotados
Gostava de ser pesada e caber contigo
Mas tenho que pedir que me abras a porta 
De manhã e ao regresso
Entre voos de andorinha.

Obrigada



Fui permitida ser
Permitida
Quisera ser antes somente eu
Eu ser num lugar cheio e bonito
Numa casa branca de brancos lençóis
Quisera somente eu, e eu era
Era as minhas mãos meus braços minhas pernas
Era o meu corpo e eu contigo
Mas tu vieste e ergueste o espelho
De frente dos meus olhos e eu olhei
Para dentro
Era um espelho pequeno, cabia na mãos
Um espelho pequeno, cabiam os olhos
E em tanto tempo voltei a ver 
Ver para dentro de mim
Voltei a olhar para dentro da íris 
Por detrás do branco do castanho e do negro
Por detrás de tudo estava eu
O meus ser mais íntimo o meu ser imenso
O meu ser esquecido o meu ser inquieto
Eu reflectida
No espelho que trazias em teus dedos
Ou os dedos eram o espelho
Ou tu eras o espelho.
Reflectida
Existi.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Eu já não sei se serei quem de antes era


Dead Combo


"Formoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.


A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente.


Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh! Quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!


Mas lá virá a fresca Primavera:
Tu tornarás a ser quem eras de antes,
Eu já não sei se serei quem de antes era."


de Francisco Rodrigues Lobo, que nele se afogou, a 4 de Novembro de 1621