segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Chapelaria



Talvez já vos tenha falado desta Budapeste-metamorfose. Como um urso que hiberna no escuro inverno, como um animal pequeno que muda as suas cores com a neve. Talvez até seja tartaruga, que se expande ou recolhe na sua casca.
Eu vou falar de Budapeste-inverno, um lugar povoado de blocos altos de paredes de alvenaria. Abrigos cinzentos e descascados, que no verão vomitam esplanadas e pátios, e no inverno as engolem para as suas catacumbas, ciclicamente. As casas de Budapeste são poderosas, já vos tinha dito. Não são os jardins nem as fontes, nem as largas ruas, nem os passeios largos e inóspitos. São as casas: o centro de tudo. A casa de Peste é um edifício de 4 ou 5 andares, cave de tectos baixos e arcadas, pé direito alto, massivas entradas, grandiosas escadarias e pátios silenciados rodeados de varandas que dão acesso às portas. Portas que se atravessam, que levam a muitos lugares. Podem ser casas somente, ou então, estúdios, pequenas escolas, podem ser bares, lojas, oficinas, bibliotecas ou clubes de jazz, antigos centros de espionagem, prisões, abrigos. Eu sei que todas as cidades têm casas. Mas Budapeste segue uma dinâmica ancestral, labiríntica, secreta. Um emaranhado de segredos que permanecem pelos séculos. Estantes sobre paredes sobre esculturas sobre frescos. Histórias acumuladas em camadas como a tinta e o papel de parede.

Na rua que liga Astoria a Blaha Luzja há vários lugares que me intrigam e inspiram. Naquele dia não foi o maravilhoso cinema Uránia com os seus tectos de ouro, nem foi a associação cultural Múszi no topo de um centro comercial semi-abandonado, ou os quadrados de bronze inscritos no pavimento, indicando os nomes e as mortes que ali aconteceram, na segunda grande guerra. Naquele dia o que nos intrigou foi uma das muitas montras sem loja de Budapeste. É que por vezes se vêm vitrinas nos edifícios com alguns produtos e um papel indicando um andar e campainha. É preciso procurar dentro das casas pelos proprietários destas montras, normalmente pertencendo aos artesãos, alfaiates, sapateiros. Esta pertencia a um chapeleiro, chapéus de inverno em pêlo para finas senhoras.
Tivémos de subir a um primeiro andar por escuras escadas para descobrir, ao final de um corredor, a loja que já existe, imutável, desde os anos quarenta. Uma das muitas cápsulas do tempo da cidade. 
A senhora mostrou-nos, orgulhosa, o espaço. A oficina onde o marido estende as peles e coze os chapéus, mostrou-nos as máquinas e os moldes. E nós tirámos fotos, agradecemos, prometemos contar a história e aqui o faço. História do lugar que o seu pai começou um dia, antes de Budapeste pertencer aos alemães antes de Budapeste pertencer aos soviéticos, antes, quando as finas senhoras que ontem eram meninas de caracóis armados e ganchos aqui vinham comprar estes mesmos acessórios para combinar com o vestido de cetim, o casaco de fazenda e os botins, que ainda hoje aqui podem voltar e repetir os mesmos rituais, e sair para a rua como têm saído em todas as suas décadas. E agora eu sei porque continuam a vestir o mesmo vestido de cetim, o mesmo colar de pérolas, o mesmo chapéu de pêlo de zebelina e pregadeira na lapela. Eu vejo-as no metro de baton e risco nos olhos, nos seus oitentas, prolongando a aristocracia que Budapeste um dia haveria de ter contida em todas as esquinas, e que se foi perdendo com o mesmo vagar com que a fuligem se depositou sobre as paredes. Eu vejo-as e sei agora onde foram comprar o chapéu. Tal como adivinho, por cada vitrine que passo, o existe por trás daquele espacinho. É só vir a curiosidade e tocar a mais uma campainha. É preciso vir para abrir mais uma porta, visitar mais uma divisão desta cidade que se guarda, mas se nos mostra, se lhe pedirmos.













Das não ditas


Os silêncios são onde existem as vozes:
Espaços brancos cheios de vazios.
As conversas dizem-se mudas
Pelos dedos.

Eu sei, eu sou das palavras não ditas
De um limbo flutuante 
Como a geada pairando sobre o estio
Em manhãs azuis

Eu sou das palavras que saem pelas mãos
E não pela boca
Das que não têm tempo, nem voz, nem lugar
Daquelas que entram pelos olhos, e não pelos ouvidos
Palavras-corpo, palavras-casulo
narradas mudas por vozes etéreas
Castelos erigidos em teias de seda
Paixões perdidas, inimaginadas.
O mundo suspenso antes dos suspiros!

Eu pertenço, embriagada.

Porque é no silêncio,
contido de formas caligráficas
Que moram os dragões de escamas douradas.
E as criaturas de corações bordados.
E eu recuso o som como recuso cada ponto final
Eu quero um mundo repleto de expectativa
De coisas por acontecer e de promessas
Eu quero habitar nas casas dos Ós, os pontos dos Ís
Permanecer em eterna possibilidade

Enamorar-me do sonho, 
E não da verdade!


Ao som de: Sidsel Endresen & Bugge Wesseltoft: Birds