sábado, 23 de maio de 2015

Salento


Dicas para viagens em Puglia:
- Só e somente se fala italiano (é tentar aquela língua inventada misturando todas as línguas latinas)
- Está mais distante do resto do mundo que a geografia indica, ser portuguesa pareceu-me exótico.
- Nas cidades, se o lugar de estacionamento está livre, é porque há um motivo.
- É bom perguntar, toda a gente tem um amigo que faz qualquer coisa que precisas, ou que está disposta a ajudar, ou sabe onde é que se come bem. Os mapas não são tudo.


Salento. Sol, sal, vento, lento. Daqui conhecia-lhe a tarantella, dançada e gritada até à madrugada, numa noite em Celorico da Beira. O resto era imaginação, aquele fascínio de chegar ao fim. O fim de Itália, o fim da terra, os fins do mundo que coleciono. Finisterre envolta em nevoeiro, Sagres e as sua escarpada garganta, cortante como o mar negro. o fim da Albânia, depois das montanhas, que guarda o melhor segredo para os aventureiros. Lugares mágicos onde as últimas rochas enfrentam as primeiras ondas. Nomes místicos e murmurantes, desertos de pó, estradas vazias e horizontes, a essência singular de um lugar que já não nos pertence, que é dos monstros, dos deuses, dos heróis.
E assim seria chegar ao local que imaginei encontrar habitado por grandes homens cantantes de túnica branca e pandeiretas, e nele encontrar uma singela capela coberta de maresia e conchas. Um farol solitário, uma cascata monumentalle, artificial celebração deste ponto, tentativa de conceder ao local o dramatismo inexistente, passando ela a carregar um dramatismo decadente, o de estar fora funcionamento a expor as suas pedras escurecidas, os seus buracos e tubagens.
Mas de Salento, e de Apúlia, afinal, provámos algo diferente do que antes esperei. Do que o tempo e as surpresas permitiram, ficam as ruas murmurantes de Bari com as suas portas-cortina, que separam, ou deixam de separar a vida de dentro da vida de fora. Ficam cartões postal de furgonetas e lambretas conduzidas de mil maneiras por homens de fato nos olivais, ficam os pombos de Torre dell'orso, que um dia se abriu finalmente em azul como o sol, ficam os pombos promovidos a ave marinha, promovidos a gaivota, a viver nos penhascos, a voar sobre o mar, a nidificar nos rochedos, pequenas grutas nos rochedos, como as grandes que vimos antes na magnífica Matera, onde viviam pessoas desta vez, homens vivendo como animais, animais vivendo com os homens, todos promovidos a seres do mar, os voos picados das andorinhas ameaçando embater o asfalto, sempre a brincar com os medos, ficam os vilarejos mais ou menos intactos, os buracos das estradas e dos passeios, as giestas que crescem livres, o cheiro a jasmim, e finalmente, a placidez de segunda-feira de Conversamo com orquestras e velhos debaixo de árvores centenárias.
Mas partimos. 
Sabendo que de Salento só provámos a pequena parte, porque aqui, para conhecer é preciso perguntar às pessoas e mudar os olhos, é preciso o tempo e o vagar dos velhos que se sentam olhando os pomares, e nós chegámos com os dias apressados da cidade.
Mas, se um dia sentir saudades de Salento, do perfil de seus pinheiros mansos, das suas vilas históricas, das suas estradas delgadas entre as oliveiras, dos campos amarelos estalando ao sol, de todas as casas viradas para ao mar, sei que não tardarei a encontrar igual conforto em cada recanto de Portugal.

Ao som de: Officina Zoe Pizzicarealla

Junho



No fundo dos prantos
Debaixo dos mantos
Lisboa chama-me de voz mansinha

Com patas de gato
Do sol e do mato
Lisboa vem, feita andorinha

Eu quero morrer nas tuas sombras, Lisboa
São sombras quentes de pinheiro manso
E acordar ao sol feita sardinheira.

Em pátios onde as cores nascem diferentes
Ando eu pelo mundo e já não sou tua
Mas tu vais chamando, e por cada rua
Crescem em mim as tuas sementes.

E eu já não sei quanto mais consigo
Até voltar a abraçar teu abrigo. 

Por enquanto, trago-te comigo.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Fotografias



Um dia acordei e não me chegava
As ruas os arcos as tardes abertas 
Um dia acordei e voltei e precisar 
de sonhar alto
De pensar nos dias que se seguem
A este, quente e moreno.

Esta intermitência de mim que não entendo
Este meu ser em estações 
Pois é quando o sol sai alto que recolho.
E na minha cabeça habitam fotografias
Penduradas em fios de seda
Agitadas pelo vento e vejo
Amarelecidas fotografias
Que ditam o princípio e o fim de tudo
Que puxam pelos sonhos como anzóis em besugos
Fotografias à beira mar de crianças
Madeiras apodrecidas pelo lodo
Casas caiadas e cegonhas

Um dia eu acordei
E não me chegavam as pedras do chão
Precisava de continuar procurando
Por essas fotografias
Em todos os lugares do mundo
Excepto onde foram tiradas.

Um dia acordei e não sei
Se cresci, se me afundei, 
Se procuro, se me perdi.
Eu sou a criança que habita a foto
Que segura as canas que a onda levou
Para com elas desenhar na areia.

Como as canas, transporta-me a corrente 
Por ruas de onde o mar não vi
Mas um dia acordei, e uma voz disse
Procura mais à frente, não estão aqui.


Ao som de: Emilie Lund: Childhood friend

domingo, 3 de maio de 2015

Rovinj



As palavras foram-se embora
Entardeceram, como a plácida poeira.
Adormecendo debaixo de parreiras.
Sob o sol escaldante e a erva seca.

As palavras poisam 
sem a brisa 
E sem as ondas do mar.

Como papagaios em mãos laças
Desistimos de puxar.
E descansamos entre pinheiros.
Damos os dedos, inspiramos.

E da ausência ganhamos o espaço.
E do destino, aceitamos igual
àquele dos dentes de leão.