domingo, 2 de abril de 2017

Declaração de amor aos lugares do Norte


Para se entender os Bálticos, tal como para se entender a Escandinávia, é preciso viver cá. É preciso viver todas estas incongruências, o longo inverno, a ausência e a noite, para entender porque nos apaixonamos. Na verdade, nunca se chega a entender. Porque talvez a lógica não exista. Eu acho que é sempre preciso ver a moeda com os seus dois lados: um lado que se sacrifica e outro que se ganha, um não vive sem o outro. Aqui, é o frio que dá.  É preciso o frio para ter o conforto da casa, o tempo para nós, a serenidade e as artes. Não viesse o frio e não tínhamos isso. É preciso o frio para a alegria infinita dos primeiros raios de sol. Hoje fazem 15 graus e vamos pela primeira vez à esplanada. É Abril. Lembro-me de, pelos meus anos, em Abril, já se poder ir a banhos. Aqui é somente tempo de plantar flores no jardim e de ver os rebentos tímidos tentar a sua sorte nas árvores ainda nuas. Aqui agradece-se todos os dias, e todos os dias são bons, e eu pergunto-me porque me sinto tão feliz, se nada realmente aconteceu. 

É esse o mistério dos países do norte, é esta a sua magia, as paisagens impossíveis, suspensas no tempo em que são permitidas ser, um lugar inóspito que amansa, e uma bondade que se estende sem pressas, sem percalços, sem fachadas, apenas uma felicidade imensa e a brandura.

terça-feira, 14 de março de 2017

Pensamentos soltos


Hoje faz sol em Rīga. Na verdade, desde que cheguei, é o primeiro dia em que faz sol assim : o dia inteiro. Caminho pela rua de cabeça erguida, e não com a pressa habitual a fugir ao vento. É a primeira vez que o sol me bate assim na cara, e que vejo a cor aos edifícios. É uma Rīga diferente, desperta, como se houvesse hibernado ou, ainda, como se eu tivesse, até agora, andado sem óculos, e de repente os pusesse e descobrisse o mundo com nitidez. Talvez hoje tenha chegado a primavera, embora o gelo insista em não derreter nos passeios. As pessoas saem à rua, passeiam os cães, namoram. Vejo os rebentos tímidos a brotar nas árvores, as senhoras velhas de casaco de peles, uma mulher magra com um ramo de rosas brancas na mão e penso que sim, hoje é um bom dia para comprar flores, uma rapariga de sobrancelhas finas, e um casal a beijar-se nos jardins. É como se Rīga, de repente, passasse a ser habitada. Compro um café na rua e é-me desejado um bom dia "have a nice day, enjoy your coffe". Sabe-me bem ouvir isso, isso basta-me para hoje. Apercebo-me como viver fora nos torna tão humildes, enquanto nos enche de sonhos. Como nos faz sorrir com tão pouco. Aflora-me à memória Lisboa, como um sonho, talvez uma mensagem trazida pelo sol. Quando se vive longe tantas vezes, já nem se sabe onde é dentro, onde é fora. Muitas vezes penso em casa e quero sempre voltar. Mas hoje estou aqui, a testemunhar este lugar, é primavera, e Rīga é a cidade mais bonita do Mundo.



Ao som de: Ludovico Einaudi And Ballake Sissoko - Ma Mere



sexta-feira, 10 de março de 2017

Paixão branca



Não sei se é o horizonte. Não sei se são os areais infinitos ou as ondas. Caminhar pela margem interrupta até decidir quando voltar para trás. Não sei se é esse olhar em frente por linhas: azul do céu, escuro o mar, a areia, depois as algas, depois de novo a areia, ou aqui, a neve, e por fim, os pinheiros. Também não sei se são, talvez, esses pinheiros, ou as gaivotas. Mas há algo aqui que me apazigua, e que me faz entender-vos. Talvez sejamos somente seres crescidos junto ao mar, e partilhemos essas infâncias na areia. Aqui, tão longe, olho a planície cheia de neve e parece a lua. Por vezes tudo parece um lugar irreal, enquanto outras parece casa. Ou ainda, talvez, seja apenas a brandura, que aqui nasce todos os dias e em Portugal adormece junto ao mar.
Pouco falei da vida aqui. Tiro poucas fotos porque as mãos não aguentam o frio de segurar na câmara. Neva há 5 meses agora. Os rios estão congelados. Por vezes partem-se, e amontoam-se triângulos de gelo nas margens do Daugava. Eu percebo porque alguém se pode apaixonar aqui, entre tanta adversidade, é que o frio traz a paz e o silêncio. Pequenas bolsas de calor irrompem na cidade, nos cafés, nas casas de madeira. Em alguns lugares acendem-se salamandras, noutros os aquecedores nunca se desligam. E por enquanto, até a neve derreter, lá para Maio, vai-se vivendo assim, para dentro, por quem cresceu a viver para fora. E essa paixão que se descobre por cá, venha ela das linhas horizontais ou do sossego, é uma paixão branca, serena. 
E fica assim tão fácil gostar da Letónia.

Ao som de: Ryuichi Sakamoto & Morelenbaum - Estrada Branca

quinta-feira, 2 de março de 2017

Pastel de Nata

E chega aquele momento em que vejo o meu país reduzido a um pastel de nata. Umas palavras em sotaque brasileiro e um pastel de nata. É isto que recebo de volta quando digo que sou daí "como vai você", "phashtel dê natha". E não sei se devo ficar satisfeita ou frustrada. Porque se reconhece o país, porque ouviram falar, e quando falo de dança perguntam-me se se dança o fado e eu dentro de mim sem ter quem entenda que Portugal é muito mais, Portugal é um mosaico de história, é ponto de encontro, é África, é Ásia, é o mundo inteiro, que Lisboa é tropical, cheia de jacarandás e tâmaras, e que são tantos os doces conventuais como as espécies de pássaros, que as coisas variam conforme a região, que o fado só é fado há pouco tempo, mas temos as gaitas de foles, as gaitas de beiços e as violas. Mas ninguém sabe, e Portugal encapsula-se num pastel de nata, e eu irrito-me contra o simples doce que vezes sem conta me é questionado, "you have that cake, how do you call it?". 

Eu irrito-me mas é preciso aceitar que esta é a nossa caravela, um grande pastel de nata que vai daqui até à China.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Dois Montenegros


Arrependo-me de tudo o que escrevo sobre o Montenegro, é um país confuso depois deste tempo. Vi-lhe o Verão, o Outono e agora o Inverno. As montanhas a mudar de cor. Fascinei-me ao virar de cada  estrada, a seguir a cada passo. Mas arrependo-me sempre do que quero dizer. Talvez existam dois Montenegros. Aquele que fica à superfície, esplendoroso, e aquele que fica debaixo, confuso e entrópico, e que só se revela a quem insiste em acordar sistematicamente sob o mesmo tecto. Todos os dias são um duelo entre os dois Montenegros, entre o branco incorrompível da neve e o negro da imprevisibilidade nas pessoas e nos lugares. Às vezes referem-se a outros países como "a Europa" como se aqui não o fosse, e não o é. Embora tão perto, embora o pareça para quem olha as ruas, as lojas, as casas, deixa de o ser nas mentes e nos ritmos. Então é preciso entender que dimensão é esta, e é preciso aceitar e perder um pouco de nós, ou então aprender a ir embora.

Trabalhar no Montenegro


Por vezes penso que a coisa mais difícil de fazer no Montenegro (ou pelo menos aqui, em Cetinje) é mesmo trabalhar. E não penso em trabalhar por falta de oportunidades, penso em trabalhar porque sim, porque precisamos. Trabalhar pela criação, pelo que se transforma, em nós e nos outros. Mas aqui há uma inércia, as salas estão vazias e todas as esplanadas estão cheias, todas as cadeiras ocupadas. Os copos cheios de rakja, café e cerveja. As mãos cheias de papelinhos com números de apostas. E o tempo corre devagar como uma tarde de verão, apesar dos cinco graus de Dezembro.  Apesar de ser de manhã, ou de tarde, ou meio-dia. As salas estão vazias. As pessoas falam, dão abraços e fumam cigarros cá fora. É uma maré que arrasta para a inércia. Todas as noites antes de dormir faço planos e encho papelinhos de gatafunhos. Deito-me tarde a desenhar, trabalho às escondidas para que ninguém veja. Trabalho-alternativo, trabalho-revolucionário, trabalho pedindo licença. Mas de dia fico calada, engulo as ideias e afogo-me em chá de menta. 


Viver fora é isto, não é? Pôr tudo em causa, o que é certo ou errado, o que é apropriado ou normal, quem detém a razão? Eu? Ou a gente que flutua em cadeiras ao sol, que convive e abraça os amigos e a família? Sinto-me um ponto minúsculo e indecifrável. E é preciso ceder, e ser como a gente, entender como se faz, aqui.


Mas enquando ninguém vê, trabalho. Secretamente.  

(Não digam a ninguém)