terça-feira, 14 de março de 2017

Pensamentos soltos


Hoje faz sol em Rīga. Na verdade, desde que cheguei, é o primeiro dia em que faz sol assim : o dia inteiro. Caminho pela rua de cabeça erguida, e não com a pressa habitual a fugir ao vento. É a primeira vez que o sol me bate assim na cara, e que vejo a cor aos edifícios. É uma Rīga diferente, desperta, como se houvesse hibernado ou, ainda, como se eu tivesse, até agora, andado sem óculos, e de repente os pusesse e descobrisse o mundo com nitidez. Talvez hoje tenha chegado a primavera, embora o gelo insista em não derreter nos passeios. As pessoas saem à rua, passeiam os cães, namoram. Vejo os rebentos tímidos a brotar nas árvores, as senhoras velhas de casaco de peles, uma mulher magra com um ramo de rosas brancas na mão e penso que sim, hoje é um bom dia para comprar flores, uma rapariga de sobrancelhas finas, e um casal a beijar-se nos jardins. É como se Rīga, de repente, passasse a ser habitada. Compro um café na rua e é-me desejado um bom dia "have a nice day, enjoy your coffe". Sabe-me bem ouvir isso, isso basta-me para hoje. Apercebo-me como viver fora nos torna tão humildes, enquanto nos enche de sonhos. Como nos faz sorrir com tão pouco. Aflora-me à memória Lisboa, como um sonho, talvez uma mensagem trazida pelo sol. Quando se vive longe tantas vezes, já nem se sabe onde é dentro, onde é fora. Muitas vezes penso em casa e quero sempre voltar. Mas hoje estou aqui, a testemunhar este lugar, é primavera, e Rīga é a cidade mais bonita do Mundo.



Ao som de: Ludovico Einaudi And Ballake Sissoko - Ma Mere



sexta-feira, 10 de março de 2017

Paixão branca



Não sei se é o horizonte. Não sei se são os areais infinitos ou as ondas. Caminhar pela margem interrupta até decidir quando voltar para trás. Não sei se é esse olhar em frente por linhas: azul do céu, escuro o mar, a areia, depois as algas, depois de novo a areia, ou aqui, a neve, e por fim, os pinheiros. Também não sei se são, talvez, esses pinheiros, ou as gaivotas. Mas há algo aqui que me apazigua, e que me faz entender-vos. Talvez sejamos somente seres crescidos junto ao mar, e partilhemos essas infâncias na areia. Aqui, tão longe, olho a planície cheia de neve e parece a lua. Por vezes tudo parece um lugar irreal, enquanto outras parece casa. Ou ainda, talvez, seja apenas a brandura, que aqui nasce todos os dias e em Portugal adormece junto ao mar.
Pouco falei da vida aqui. Tiro poucas fotos porque as mãos não aguentam o frio de segurar na câmara. Neva há 5 meses agora. Os rios estão congelados. Por vezes partem-se, e amontoam-se triângulos de gelo nas margens do Daugava. Eu percebo porque alguém se pode apaixonar aqui, entre tanta adversidade, é que o frio traz a paz e o silêncio. Pequenas bolsas de calor irrompem na cidade, nos cafés, nas casas de madeira. Em alguns lugares acendem-se salamandras, noutros os aquecedores nunca se desligam. E por enquanto, até a neve derreter, lá para Maio, vai-se vivendo assim, para dentro, por quem cresceu a viver para fora. E essa paixão que se descobre por cá, venha ela das linhas horizontais ou do sossego, é uma paixão branca, serena. 
E fica assim tão fácil gostar da Letónia.

Ao som de: Ryuichi Sakamoto & Morelenbaum - Estrada Branca

quinta-feira, 2 de março de 2017

Pastel de Nata

E chega aquele momento em que vejo o meu país reduzido a um pastel de nata. Umas palavras em sotaque brasileiro e um pastel de nata. É isto que recebo de volta quando digo que sou daí "como vai você", "phashtel dê natha". E não sei se devo ficar satisfeita ou frustrada. Porque se reconhece o país, porque ouviram falar, e quando falo de dança perguntam-me se se dança o fado e eu dentro de mim sem ter quem entenda que Portugal é muito mais, Portugal é um mosaico de história, é ponto de encontro, é África, é Ásia, é o mundo inteiro, que Lisboa é tropical, cheia de jacarandás e tâmaras, e que são tantos os doces conventuais como as espécies de pássaros, que as coisas variam conforme a região, que o fado só é fado há pouco tempo, mas temos as gaitas de foles, as gaitas de beiços e as violas. Mas ninguém sabe, e Portugal encapsula-se num pastel de nata, e eu irrito-me contra o simples doce que vezes sem conta me é questionado, "you have that cake, how do you call it?". 

Eu irrito-me mas é preciso aceitar que esta é a nossa caravela, um grande pastel de nata que vai daqui até à China.