segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Lisboa é uma cidade que se vê de cima, Budapeste é uma cidade que se vê de baixo

Uránia


Levei quatro meses a decifrar o enigma desta cidade. Quatro meses e descobri: Budapeste vê-se de baixo, Lisboa vê-se de cima.

Em Budapeste nada se passa na linha do olhar. À nossa frente, sempre, uma parede. É preciso inclinar a cabeça, que dá pelos rodapés dos edifícios, para olhar as janelas, os portões, telhados de cobre, estátuas de homens barbudos sustendo varandas pelos ombros, leões empoleirados em ombreiras, flores trepando pelas paredes. Em cima uma risca de céu ornamentada, em baixo, néons partidos, portas de alumínio, mendigos. Budapeste de pedra, Budapeste castanho. Aqui somos pequenos. Os prédios dominam e são os verdadeiros habitantes da cidade. A nós é nos permitido um estatudo de visitante no lugar e no tempo, Budapeste não pertence ao presente nem ao futuro, Budapeste pertence às pessoas que a construíram há muitos anos e que ainda imaginamos habitando e percorrendo as ruas ao nosso lado. Um ardina, uma carroça, uma senhora de vestido armado e chapéu de cetim.

E Lisboa vê-se de cima, olhando para baixo. À nossa frente, sempre, um pedaço de rio, um pedaço de céu. Lisboa em escadas, onde é sempre possível espreitar por cima de qualquer telhado, como se fôssemos da altura das casa, maiores que as casas, e conseguíssemos, com as nossas pernas delgadas, trepar as telhas, de rua em rua. Talvez, por nos sentirmos gigantes, também nos sentimos donos da cidade. "minha Lisboa" dizem eles, ali ganhamos o tamanho das coisas, das pedras, das árvores, das igrejas e  miradouros, pertencemo às cores e aos azulejos, somos as gaivotas, o amarelo e o azul. E a cidade, pequenina, cabe na palma da mão, mas contém em si todos os sonhos, o mundo inteiro.

Claro que tenho saudades, dou por mim a pensar em lugares só uma vez vistos e a querer voltar, tenho saudades da Gubenkian, do teatro, do Castelo, das aulas de desenho, do Martim Moniz. Tenho saudades da chinesa, do sr António e da Calçada. Tenho de saudades de saber que posso falar com toda a gente. Aqui também posso falar com toda a gente, mas é provável que nem toda a gente queira falar comigo.  E tenho saudades do lugar onde não posso voltar, ali perdido à beira rio, ainda sou capaz de sentir o asfalto quente debaixo das solas do chinelo de dedo a caminho da praia, sou capaz de sentir a erva fresca descalça, os degraus de madeira escura que nos engraxam as solas, os grãos que me enterram os pés, a tijoleira, a água fresca da mangueira que lava a areia dos dedos. Como se todo o chão fosse meu. Aqui, ali, em Lisboa, em lugares. Pertencer a um lugar é ser dono do chão. É andar nele como se descalço, saber em cada passada a sua textura, temperatura, a maciez de suas pedras. É andar com os pés como quem acaricia com as mãos, como quem afaga o dorso de um gato, como quem encera um móvel.

Mas não tenho saudades do caos, do desconforto, das casas frias do mau imprevisto, do conflito. De quase só falar português. Da falta de tempo gasto num carro, na fila, no caminho. Da cultura de viver para trabalhar ou para mostrar que se trabalha, enquanto aqui se trabalha para viver.

Lisboa ou Budapeste? Lisboa. Mas Budapeste, por enquanto.

Lisboa, de baixo; Budapeste, de cima.


Ao som de: Faunts - Gone with the day


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